O imbróglio da dívida moçambicana: estratégias de extraversão, por Gabrieli Gaio

O imbróglio

    Desde Abril de 2016, diferentes factores que influenciam os rumos da sociedade moçambicana – a seca e os conflitos entre governo e RENAMO, por exemplo – têm sido ofuscados pelo debate acerca da dívida pública no país. As dívidas excluídas das contas públicas que agora vêm à tona suscitam um clima de incerteza e desconfiança relativamente ao futuro do país, bem como uma preocupação com ajustes estruturais e seus efeitos perversos na vida dos moçambicanos.

    As referidas dívidas foram contraídas entre 2013 e 2014 com o objectivo de financiar as atividades de três empresas que contam com participação acionária do governo – EMATUM, Pro-Indicus e Mozambique Asset Management (MAM). O estado moçambicano assumiu, ainda, o papel de garantir tais financiamentos, que foram contraídos frente ao banco suíço Credit Suisse e ao banco russo VTB. As dívidas adicionais que estavam ocultas do orçamento somam aproximadamente US$ 2 bilhões, e, uma vez inclusas nas contas do estado, fazem com que a dívida pública moçambicana chegue aos 80% do PIB – quase o dobro do que se verificou no ano de 2012. Segundo o ministro da Economia e das Finanças moçambicano, Adriano Maleiane, a dívida total do país é de US$ 11,6 bilhões, dos quais US$ 9,8 bilhões constituem endividamento externo.

    Em maio deste ano, a agência de rating Fitch rebaixou a classificação de risco da dívida moçambicana para a categoria “CC”, isto é, desaconselhou o investimento no país. A Fitch esclareceu que o escalonamento da dívida constitui o principal motivo para o rebaixamento e que quaisquer tentativas de reverter o quadro no curto-médio prazo passam pela ajuda do grupo de países doadores do orçamento do estado e pela adoção de políticas de austeridade. O chamado G14, grupo de doadores atualmente presidido por Portugal[1], deliberou ainda em maio pela suspensão do apoio ao orçamento do estado moçambicano à luz do ocultamento nos dados da dívida. A agência Moody’s, além de já ter rebaixado a classificação de Moçambique, alertou que em breve colocará o país em situação de incumprimento financeiro – vulgo default – em razão da renegociação dos empréstimos contraídos pela MAM frente ao VTB. A agência acrescentou que o mesmo deverá ocorrer relativamente à dívida contraída pela Pro-Indicus frente ao VTB ao Credit Suisse – valendo ressaltar que a Suíça é parte do G14.

Enquanto isso…

    Ainda no mês de Maio, enquanto se articulava o impasse entre Moçambique e os referidos doadores, a China optou por doar US$ 16 milhões ao país a despeito da crise da dívida. A verba abriga-se em acordo de cooperação económica e técnica entre os dois países e será destinada, segundo o governo moçambicano, a projectos na área da distribuição de água potável, transportes e cultura. Além do montante, a China doou também dez mil toneladas de cereais a Moçambique. Em Junho, os chineses perdoaram cerca de US$ 4,5 milhões da dívida moçambicana. Ainda que tímida e muito podada, a ação chinesa no contexto da crise da dívida em Moçambique e da deterioração das relações com o G14 deve ser levada em consideração.

    Também em simultâneo ao imbróglio Moçambique-G14, o investimento brasileiro no país atingiu a marca representativa dos US$ 10 bilhões, estando principalmente voltado para as áreas do extrativismo mineral, construção civil e agro-pecuária. O embaixador do Brasil em Moçambique, Rodrigo Soares, se reuniu com representantes da Confederação das Associações Econômicas de Moçambique (CTA) com o objetivo de promover a cooperação e as relações empresariais entre os países. Soares ressaltou que Moçambique constitui atualmente o principal lócus da cooperação brasileira no mundo. Por sua vez, o presidente da CTA, Rogério Manuel, afirmou que a organização busca garantir a participação do empresariado nacional nos grandes projetos executados por investidores brasileiros.

    Há que se considerar, ainda, o sector financeiro em Moçambique, que vem prosperando já há algum tempo, mas teme pelas políticas monetárias restritivas que já se ensaiam no país e podem ser aprofundadas de acordo com demandas do FMI e de doadores. Trata-se de setor considerado sólido no país, porém com histórica concentração em poucos agentes financeiros – com destaque para a participação de bancos portugueses. Nesse sentido, será interessante monitorar de que maneira o G14, presidido por Portugal, irá conduzir sua postura relativamente a Moçambique considerando não apenas seu papel enquanto doador, mas também de investidor em diferentes sectores da economia moçambicana.

Extraversão

    O imbróglio da dívida moçambicana origina-se a partir de dívidas ocultas – agora reveladas – contraídas frente a agentes financeiros estrangeiros. Os empréstimos ocorreram de acordo com dinâmicas decisórias oriundas de esferas do governo moçambicano, que possui participação acionária nas empresas em questão. Os bancos estrangeiros deram sinal verde para os empréstimos, tendo o estado assumido a responsabilidade de garantir tais financiamentos. O debate agora materializa-se em negociação com um grupo de doadores internacionais acerca das incertezas relativas à continuidade do fluxo de recursos estrangeiros para apoio ao orçamento do estado.  

    O imbróglio da dívida moçambicana e os acontecimentos paralelos ao mesmo são caracterizados pelas estratégias de extraversão no âmbito político-econômico – isto é, os recursos e interesses internos extravertem-se na administração dos recursos e interesses externos no país. Afastando-se de uma visão respaldada pela noção de uma dependência externa capaz de podar qualquer autonomia governativa no continente africano, deve-se admitir a possibilidade de que governantes ou elites internas administrem seu relacionamento assimétrico com atores estrangeiros de acordo com o contexto espaço-temporal em questão. Isto é, não se trata de negar dependências ou assimetrias características do relacionamento com o exterior, mas sim de apreender a “dependência como modo de acção”[2].

    Nesse sentido, o investidor que pretende materializar um projecto relevante e de longo prazo no mercado moçambicano deve evitar informar-se segundo fontes que costumam tratar Moçambique como donor darling ou “queridinho dos doadores ocidentais” – uma prática discursiva com alto efeito político e pejorativo independentemente das intenções. Esta noção pouco serve a quem planeja investir no país, uma vez que menospreza a capacidade de agência dos governantes moçambicanos frente à comunidade internacional e leva a percepções distorcidas acerca do ambiente de negócios e da economia política local – deixando muitos perplexos e desprevenidos diante das tais dívidas ocultas.

Foto Principal: Praça da Independência, em Maputo, por  Gustavo Sugahara .


[1] O G14 é composto pelo Banco Mundial, pelo Banco Africano de Desenvolvimento, pela Comissão Europeia, Áustria, Canadá, Espanha, Finlândia, França, Irlanda, Itália, Portugal, Reino Unido, Suécia e Suíça.

[2] Bayart, Jean-François. (2000). Africa in the world: a history of extraversion. African Affairs, 99, pp. 217-267.

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